"É preciso fortalecer e avaliar a tradição"
Por André Baniwa
Movimento Indígena
Em 1992, quando voltei da escola agrícola de Manaus, cheguei ao Içana no momento em que o pessoal estava se mobilizando para criar uma organização. Ajudei na mobilização das pessoas e, em seguida, criamos a Oibi. Começamos a discutir problemas que estávamos enfrentando e a pensar soluções para eles. Acabei me tornando relator, falando em nome do grupo, e assim, entrei no movimento indígena. As comunidades não pareciam aceitar muito a idéia de um movimento indígena. Mas estávamos todos preocupados com o futuro. Queríamos criar ambiente de respeito, pensar o que era necessário para nós e o modo como pretendíamos viver. A Funai transmitia uma imagem negativa do índio e o sistema de educação não valorizava a nossa tradição. Esses problemas não saiam da minha cabeça. Em 1993, comecei a acompanhar mais de perto a Foirn. Eu era muito jovem, então ninguém prestava muita atenção em mim, nas minhas falas, nas minhas idéias. Eu ficava só escutando.
Vivendo em São Gabriel da Cachoeira
Estou vivendo hoje em São Gabriel por necessidade do meu povo e devido à estrutura que põe o sistema de luta através da associação. Jamais tinha pensado antes em ir morar na cidade. Fui para lá em 2000, mas eu queria ter mantido minha família na aldeia. Não moro em São Gabriel. Ali, eu moro-trabalho, pelo menos isso é o que eu sinto. Continuo brigando para fortalecer as coisas lá na comunidade, e justamente por isso que não me sinto morador da cidade. Nem posso me envolver com as coisas de lá. As viagens que faço me distanciam da comunidade, isso é muito difícil para mim. Estou descobrindo os não-indígenas para tentar me encaixar dentro de um ambiente de respeito dado nas relações entre culturas diferentes. Meu principal objetivo é tentar apagar essa imagem negativa do índio, essa imagem errada do índio como preguiçoso. Como alguém que só sabe pedir para Funai e para os políticos.
Saudade da vida na comunidade
Eu sou liderança Baniwa porque tenho uma missão a cumprir dado pelas comunidades que represento. E eu comparo a liderança a um guerreiro. A liderança fala da luta para ter qualidade de vida na comunidade. Ela combate um sistema que contaminou a sociedade indígena, nunca cansa de fazer o seu trabalho. Quando discuto qualidade de vida, sinto muita saudade da comunidade. Sinto saudade de sair para pescar num igarapé, buscar frutas no mato, ir à roça, voltar a qualquer hora e ainda ter tempo para jogar, brincar... Sinto saudades de acampar para pescar.
O orgulho de um Baniwa é ser também um bom flechador de peixes. Sinto muito falta de disso, pois meus filhos estão na cidade. O que eu defendo é contrário ao modo de vida dos meus filhos lá na cidade, talvez porque lutam junto comigo. Eles não estão na escola que eu estou defendendo. Pode ser que um dia eu os mande para a escola baniwa e continuarão a entender melhor a luta assim. Enquanto isso mantenho a língua indígena para falar com eles. Tentamos também não comer apenas as coisas da cidade. E tento transmitir nossos conhecimentos.
A comunidade do futuro
Por limitação de recursos, não consigo voltar sempre para o lugar de onde saí, mas tento reproduzir da melhor maneira possível a vida da comunidade em São Gabriel. Onde fazemos as nossas roças não tem rio, o lago que tinha antes. Mas é possível que a família toda volte para a comunidade. Eu converso bastante com eles, não seria difícil para nós voltarmos. Vai chegar um momento em que eu não vou mais precisar ser liderança, então poderei voltar para a aldeia. Para mim, a vida na cidade é uma coisa temporária. Por isso, o que eu recomendaria aos meus filhos é que eles continuem a luta pela nossa região sem ter que sair da comunidade. Se um de meus filhos resolver voltar para a comunidade e continuar essa luta, eu ficarei feliz.
Desdemonização da tradição
Eu queria gravar depoimentos dos nossos velhos sobre o futuro das aldeias. Eu tinha pensado em falar com alguns pajés e lideres religiosos do clã do qual pertenço. Eles partiriam de uma avaliação dos tempos atuais. Estamos numa época na qual é preciso fortalecer e avaliar a tradição pós-contato e a retomada da autonomia. Na comunidade, apareceu a necessidade de incluir, nas discussões sobre a escola diferenciada e também sobre a escassez de peixes e outros recursos naturais, o processo da cultura e da religião. Aquilo que incomoda as pessoas e que missionários definiram como “sendo do diabo” precisa ser trabalhado. Precisamos revalorizar essas coisas e encontrar algo novo entre elas e as coisas de hoje em dia.
Todos os conhecimentos estão associados com a mitologia. A cestaria, os grafismos estão associados à mitologia. Não é possível viver sem isso. Processamos as nossas comidas de todo dia com isso. É preciso refletir sobre tudo isso de uma outra forma. É preciso discutir profundamente a cultura. As tradições dos povos indígenas foram vistas como coisas do diabo. Kuwai foi comparado pelos missionários ao diabo [Kuwai é um personagem da cosmogonia baniwa caracterizado pelas suas metamorfoses monstruosas; ensinou os ritos de iniciação aos homens e deu origem às doenças]. Tudo isso interferiu no sistema de manejo, no conhecimento da ecologia, no relacionamento entre parentes. Estamos tentando recuperar esses conhecimentos nas nossas pesquisas. Não é verdade que tudo isso seja coisa do diabo. Com essa condenação, alguns velhos guardaram para si muitos conhecimentos que passaram a condenar. Hoje em dia, cabe a nós trabalhá-los na escola baniwa. Queremos garantir a transmissão desses saberes para as novas gerações.
Revalorização da cultura
Queremos superar alguns limites. E para isso pretendemos tornar os mais velhos, os líderes religiosos mais próximos do movimento. Vamos começar um processo de discussão com eles para refletir sobre o processo que vivemos hoje. O registro da nossa cultura, dos nossos conhecimentos é muito importante. Se não registrarmos, perdemos tudo, ficamos um povo sem história, sem origem. O registro de narrativas míticas é muito forte na educação escolar que montamos. A prática de transmitir o conhecimento oralmente não funciona mais como antes. É preciso trazer isso para o espaço da escola, é preciso criar novamente a relação dos jovens com o conhecimento, que antes era produzido nas roças, nas caminhadas no mato, dentro de casa, perto do fogo de manhã.
Difícil arte de liderança
Acho que sou aceito por grande parte da minha comunidade. Mas sempre há uma ou duas pessoas que discordam e podem mesmo ameaçar. Estou me referindo especificamente à Oibi. Tem gente lá que gosta muito de mim, mas tem uma pequena parte que faz campanha contra. Tem muita inveja. Tem gente que diz que tudo o que você faz é para você mesmo, para sua família. Eu fiquei doente umas quatro vezes, não de doença qualquer, mas de doença tradicional nossa, doença que alguém coloca na nossa comida. A maioria gosta do nosso trabalho, mas algumas pessoas podem nos colocar em risco de vida. Nem por isso desisto. A transformação é sempre dolorosa. Tem gente que acha que viajar de avião, de motor, ficar trancado numa sala de reunião, isso que é vida boa. Não entendem que ter uma roça própria, ter tempo para pescar é muito mais legal do que eu fico fazendo. A inveja está associada ao pensamento de que as pessoas têm muito dinheiro. É essa a leitura que muita gente faz de nós, lideranças. Sofremos. Liderança, eu já disse, é como guerreiro, sujeito a qualquer momento ao ataque do outro, seja ele interno ou externo também.
Conhecendo a realidade de meu povo e conhecendo a realidade da sociedade envolvente, consigo fazer alguma coisa pela minha comunidade que seja aceitável também para sociedade envolvente. É importante criar um ambiente de respeito entre as culturas. Só é possível fazer isso conhecendo as duas culturas. Eu sou como um intermediário. Tento traduzir a minha cultura para não-indígenas e tento traduzir o que vejo e o que ouço falar para minha comunidade. Assim, acabo aparecendo demais, fico em evidência e tem gente que fica com inveja.
Tem muita liderança que não conversa com os velhos, que não procura entender como funciona a cultura. Essa liderança não cria nada, não avança. Tem gente que quer ser diretor de associação só para ganhar por mês. Essa é a grande ilusão. Porque nunca ninguém pagou alguém para lutar por um direito da minoria. Ao contrário, se perderam vidas. Agora, se for assim, sou radical: é melhor que saia da associação. É importante a liderança entender que é um representante do seu povo ou comunidade.
Ser representante é assim: eu não sou o André sozinho. Eu sou mil e quinhentas pessoas na Oibi. E se eu falo em nome da Foirn, então eu sou 35 mil indígenas. A liderança já traz conceito que não é de líder. A liderança é condutor de um processo que não é dele, no máximo concorda em lutar. Esta é a missão difícil de fazer. Para fazer isso é preciso no meu caso entender a cultura baniwa. Só assim dá para defender os Baniwa e os demais povos indígenas.
Depoimento coletado por Fany Ricardo e Renato Sztutman em julho de 2006. Editado por Renato Sztutman
André Baniwa, entre a aldeia e a cidade
Por Beto Ricardo (antropólogo e sócio-fundador do ISA)
André Fernando Baniwa, 35 anos, nasceu na comunidade de Tucumã-Rupitã, no alto Içana (AM). Logo em seguida, a família mudou-se para a comunidade de Ipadu Ponta, no Rio Negro (próxima à cidade de São Gabriel da Cachoeira), onde permaneceu até meados da década de 1980, quando a comunidade se desfez. De volta a Tucumã, em 1987 André foi estudar em Manaus, onde freqüentou como aluno, até o final de 1991, a Escola Agrícola Rainha dos Apóstolos, dirigida por um ex-padre católico. Novamente em Tucumã, assumiu a função de professor na sua comunidade de origem, como funcionário da prefeitura. Em meados de 1992, foi eleito segundo tesoureiro na fundação da Organização Indígena da Bacia do Içana (Oibi). Em 1996, André foi eleito presidente da Oibi, e reeleito duas vezes, em 2000 e 2004. Foi bolsista da Fundação Ashoka (2001 a 2003) e, desde janeiro de 2005, é vice-presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), com sede na cidade de São Gabriel da Cachoeira, onde mora atualmente com a esposa e cinco filhos.
Os Baniwa são hoje mais de 12 mil, e vivem em mais de 200 comunidades situadas na região limítrofe entre Brasil, Colômbia e Venezuela.