De Povos Indígenas no Brasil

“Hoje tem muita doença porque a população está grande e tem muita coisa complicada: fumaça de pneu, plástico”

por Osmarino Corrêa

Ali naquele Igarapé no meio do campo, a gente sabe que ali é um lugar muito importante, até porque aquela água é a nascente do igarapé que desce. Quando a gente era mais novo e ia caçar pra lá, fazer outros trabalhos e pegar cipó, a gente tomava banho lá naquela água. Eu só queria dizer desse assovio aí. Eu acho que não é coisa de matar. Se alguém fica com medo é por não saber o que é. A gente sabe. Esse campo tem uma mãe. Ela é um espírito que nunca atacava, mas agora que tem muitas consequências, muitos barulhos, muita derrubada de mata, aí ela começou a atacar. É por esse motivo que à noite ela começa a brincar com quem tem aquele medo. A pessoa corre mesmo porque não sabe o que é.

Hoje tem muita doença porque a população está grande e tem muita coisa complicada: fumaça de pneu, plástico. Essas coisas são muito complicadas. Naquele tempo só tinha comércio lá pra cima. Não existia plástico. Calçado era aqueles tamancos de pau, quando não era pezão no chão e nem frieira pegava. Naquele tempo, os velhos colocavam traíra no colar e caridade no braço para a criança não virar bichinho mexilhão. O que complica é que as doenças daquele tempo não são reconhecidas hoje, porque têm outro nome. Eu valorizo o remédio caseiro e tenho certeza que cura mesmo. Aprendi fazer os remédios, os trançados. Nossa natureza é rica. Todo mato e árvore é remédio.

Dos tempos no Arapiuns

por Leandro Mahalem de Lima, antropólogo e doutorando pelo PPGAS/USP

Em suas reflexões, Seu Osmarino e Dona Raimunda, habitantes da TI Cobra Grande, às margens de um igarapé próximo ao encontro entre os rios Tapajós, Arapiuns e Amazonas, no centro-oeste do Pará (Santarém/PA), chamam a atenção para as muitas consequências dos novos tempos. As coisas hoje se apresentam a eles como um mundo de estranha- mento, tomado pela cegueira e pelo desrespeito. Nada, entretanto, passa despercebido pelas mães dos igarapés, das matas e dos campos. Espíritos do fundo, capazes de se manifestar na superfície na forma de qualquer “bicho”, são os verdadeiros donos dos domínios que, cada vez mais, estão a emitir seus sinais de contrariedade com a intensidade das novas mudanças e desarranjos, provocados pelas ações desenfreadas daqueles que não “entendem” do respeito às mães que cuidam de tudo o que há.

Em poucas décadas, desde os tempos de sua juven- tude, os campos foram cercados para pastagens. Desmatadas, pisoteadas e repletas de fezes de animal, as nascentes do igarapé viraram bebedouro para o gado. As matas e a caça foram reduzidas pela pressão madeireira. Os peixes escassearam pela demanda por compra dos grandes barcos. A estrada não asfaltada (PA-257), que liga Santarém às minas de bauxita de Juruti, cresceu e avança sobre suas áreas de ocupação. Caminhões, caminhonetes e ônibus circulam cada vez mais ao lado de suas casas.

Fazem barulho, liberam fumaças. Traficantes circulam em busca de rotas alternativas para o transporte de drogas e bens roubados, aliciando a população local. A circulação pelos rios e trilhas é cada vez mais restrita e cheia de impedimentos. Novas doen- ças proliferam, as antigas já pouco são nomeadas. As jovens mulheres parecem já não levar a sério os resguardos. Os velhos sacacas, com sua habilidade de interpretação e cura, se foram, deixando apenas algo de seu saber e força para os curandeiros.

Seu Osmarino e Dona Raimunda, fundadores da aldeia do Tapajós do Garimpo, conhecedores dos remédios da mata, temem profundamente os desar- ranjos, que, cada vez mais se aproximam de suas casas. Não participam ativamente do movimento indígena, embora tenham esperança no esforço dos jovens para que o Estado os reconheça como povos indígenas, e lhes reconheça direitos tradicionais. Melancólicos, gostam do recolhimento em sua casa ventilada de palhas de curuá, cipó-titica e esteios de sapopira, às margens do igarapé Sepetú, gerador de um dos braços do lago Arimum, que desemboca no Arapiuns. Ali se mantêm de suas roças, quintais e trilhas de coleta; próximos de seus filhos e netos, à beira do igarapé onde estão acostumados a monito- rar os sinais dos desarranjos.

Depoimentos colhidos em 8 agosto de 2008, na TI Cobra Grande, por Leandro Mahalem Lima