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Indígena e parceira do MST, Tainá Marajoara vai cozinhar para chefes de Estado na COP 30: 'Vão comer nossa comida revolucionária'

02/10/2025

Autor: Ana Carolina Vasconcelos E Lucas Salum

Fonte: Brasil de Fato - https://www.brasildefato.com.br/



Indígena e parceira do MST, Tainá Marajoara vai cozinhar para chefes de Estado na COP 30: 'Vão comer nossa comida revolucionária'
'Vai ter cuia, açaí, reforma agrária e demarcação de terra', diz cozinheira

Por meio do Ponto de Cultura Alimentar Iacitatá, povos indígenas e tradicionais da Amazônia brasileira irão cozinhar para chefes de Estado na COP30. Tainá Marajoara, cozinheira, ativista e promotora cultural que fundou o coletivo, explica que garantir que a comida típica da região estivesse em um espaço privilegiado da conferência não foi tarefa fácil, mas conquistada com muita pressão.

"Entendemos isso como uma vitória de todos os povos do mundo, porque é uma conferência global. E é uma conferência global que, pela primeira vez, vai ter um espaço de alimentação realizada por povos indígenas, culturas tradicionais, culturas populares e camponesas", avalia, em entrevista ao Conversa Bem Viver.

Inicialmente, a organização da COP30 queria que o grupo ficasse apenas na área destinada aos movimentos populares, com os quais Marajoara, que é parceira do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), já possui profunda relação. Mas os membros da Iacitatá sabiam que essa era uma oportunidade para que líderes mundiais, como Emmanuel Macron, presidente da França, pudessem conhecer a produção amazônica.

"São essas pessoas que vão sentir o cheiro, o sabor e a revolução que a gente faz desde o chão da Amazônia. Esse espaço na COP tinha nos sido negado, mas fomos lá e conquistamos. Estaremos lá com a nossa cozinha", comemora.

Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato - Como foi o processo para que o Ponto de Cultura Alimentar Iacitatá fosse responsável pela alimentação na COP 30?

Tainá Marajoara - Chegamos até a brincar que, quando entramos na licitação, era chance abaixo de zero. Porque, como íamos entrar numa licitação completamente injusta e excludente? A primeira de todas as exclusões e o racismo e o colonialismo notórios desse processo aconteceu quando proibiram o açaí, o tucupi e a maniçoba. Foram proibidos sucos naturais e produtos artesanais. Então, só poderia ter os sucos industrializados no espaço da COP.

Isso nada mais é do que o racismo e o colonialismo absolutamente explícitos e corriqueiros, como eles estão acostumados a fazer. Eles são a branquitude, o sistema institucional, o pensamento hegemônico e o norte global, que, quando chega, acha que pode comandar todos nós. Acreditam ser os donos dos nossos corpos, territórios e de tudo aquilo que nós somos.

Mas aqui não. Estamos falando de povos indígenas e comunidades tradicionais. Nós somos a nossa cultura e eles não iam passar batido por aqui. Fomos para a audiência pública e enfrentamos todas as cláusulas do edital. Inclusive, a audiência pública teve um pedido formal de desculpas da Secretaria Geral da COP e da Organização dos Estados Ibero-Americanos, que foi a responsável pela elaboração do edital.

Além dessas proibições absurdas, tivemos uma cláusula que dizia que, entre os 40 espaços da alimentação disponíveis, um único CNPJ poderia adquirir até 15 espaços. Ou seja, três CNPJs seriam responsáveis pela alimentação na COP.

A gente foi para cima, quebrar mesmo a licitação. Infelizmente, só eu era a única mulher indígena ali. Tinha um quilombola; o chefe Edu, quilombola também; e a mãe Juce do Acarajé, que é uma mãe de santo aqui da região.

Nós três nos juntamos e fizemos valer a nossa voz ali, carregados da ancestralidade e com a guiança das lutas. Fomos para cima e utilizamos os argumentos que tínhamos, inclusive de que nós não queríamos disputar essa licitação, nós deveríamos ter sido convidados a estar nesse processo.

Não só nós povos indígenas, mas também as comunidades tradicionais, camponeses, extrativistas, todos aqueles que produzem alimentos justos, de qualidade, com justiça climática, com justiça social, com conservação, com feminismo. Nós deveríamos estar nesse espaço.

Conseguimos que fosse feita uma reserva de vagas para povos indígenas e comunidades tradicionais e a questão do CNPJ foi também flexibilizada, porque, até então, só poderiam participar CNPJs de restaurantes.

Dissemos que não éramos restaurantes e que nós, que viemos dos campos, das águas e das florestas, somos outros CNPJs. Porque a comida não é só uma mercadoria a ser vendida, ela é a nossa vida, é aquilo que nos faz.

Então, conseguimos que fossem flexibilizados para espaços culturais, cooperativas, associações, CNPJs representativos de povos e comunidades tradicionais, e de trabalhadores. No entanto, quando foi publicada a errata, não saiu uma reserva de vaga para nós no restaurante, só tinha saído uma cota para que os povos tradicionais pudessem ocupar os quiosques.

E aí dissemos que queríamos um restaurante. Tivemos que ir para a ampla concorrência, mas, antes disso ser publicado, também ainda teve uma outra disputa, porque eles queriam nos dar a green zone, onde ficam os movimentos populares.

E a gente disse para eles: "não, a gente não quer a green zone. É um lugar muito confortável para vocês. A gente quer a garantia de espaço na blue zone, onde ficam os chefes de Estado. A gente sempre precisa dialogar com os diferentes. A gente tá sempre disposto a dialogar com vocês. Vocês que não dialogam ou, quando dialogam, não escutam e, por isso, temos que fechar BR".

Dissemos que estávamos ali dispostos não só a dialogar, mas também a cozinhar para os diferentes. Conseguimos o direito de ficar na blue zone e são os chefes de Estado, como Lula (PT) e Macron, presidente da França, que vão comer a nossa comida. São essas pessoas que vão sentir o cheiro, o sabor e a revolução que a gente faz desde o chão da Amazônia. Esse espaço na COP tinha nos sido negado, mas fomos lá e conquistamos. Estaremos lá com a nossa cozinha.

Entendemos isso como uma vitória de todos os povos do mundo, porque é uma conferência global. E é uma conferência global que, pela primeira vez, vai ter um espaço que vai ser de alimentação realizada por povos indígenas, culturas tradicionais, culturas populares e camponesas. Só de peixes vão ser duas toneladas e meia, pelo menos, de pescado da pesca artesanal.

De marisco também são duas toneladas direto da pesca artesanal. Entre arroz, café, feijão, sal, açúcar e outros grãos, são cinco toneladas direto do movimento sem terra. Então, é muita comida, com muita luta, revolução e justiça para todo mundo.

Como está a elaboração das refeições para tantas pessoas?

Temos um cardápio, mas mais difícil do que cozinhar, é conseguir o dinheiro para manter toda essa produção. Quem trabalha com agricultura familiar sabe que a gente trabalha com justiça, com protagonismo e com também a equidade financeira. Nossa logística da agricultura familiar é muito mais cara que a da indústria de alimentos.

Fizemos um cálculo que mostra que precisamos, para montar a cozinha e conseguir os alimentos, de algo em torno de R$ 850 mil. Só de compra da agricultura familiar são R$ 600 mil. Estamos buscando parceiros que possam nos ajudar a financiar .

O agricultor precisa vender e receber de forma justa e rápida. Ele não é indústria de alimentos que te dá bonificação e 60 dias para pagar porque recebe 99% de incentivo fiscal e subsídios. Nós, enquanto um restaurante oficial do Brasil na COP, somos um espaço descentralizador de renda. Somos um distribuidor de riqueza com as nossas compras.

Por isso estamos buscando apoio. Quem souber de apoios, patrocinadores, pessoas que possam nos ajudar nessa causa, ficaremos muito felizes em receber qualquer contribuição. Serão cinco espaços na blue zone, mas nós somos o único de cozinha brasileira. Vai ter cuia, açaí, reforma agrária e demarcação de terra sim. Tudo isso vai fazer parte do prato.

Essa experiência pode ajudar a sensibilizar os chefes de Estado em relação ao que realmente está sendo produzido na Amazônia? Isso pode ajudar a mudar a concepção mundial sobre energia e os cuidados com o planeta?

Isso é a base da nossa alimentação e da nossa luta enquanto movimentos sociais, culturais e étnicos. Para nós, foi uma surpresa, porque um dos pontos de desempate da licitação era o oferecimento de um percentual de faturamento para conseguir participar do restaurante.

Ou seja, você teria que destinar cerca de 10% do seu faturamento para organização da COP. Eles estão cobrando aluguel? E a gente disse: 'Não. Não vamos oferecer absolutamente nenhum percentual. O nosso percentual de faturamento a ser oferecido para COP é zero'. Porque nada é mais valioso do que a presença de povos indígenas e comunidades tradicionais e uma cozinha feita por nós nesse espaço. Nós temos todos os indicadores positivos que esse mundo procura.

Se você vai ter uma cozinha feita com alimentos indígenas, alimentos de povos tradicionais e alimentos da reforma agrária, que percentual vai ser mais valioso que esse? Não existe. Nós somos o que existe de mais valioso na alimentação desse planeta, enquanto os outros espaços vão trazer alimentos industrializados, que vêm do agronegócio, que vêm com injustiça.

Nós vamos dizer a todo minuto e a todo custo que nós somos uma cozinha sem genocídio. Essa COP não pode ser uma cozinha "genocídio carbono neutro". Não pode existir isso. A gente precisa fazer essa discussão, porque nós, como povos indígenas, comunidades tradicionais e camponeses, estamos sendo assassinados na mesma velocidade com a qual estão destruindo os nossos territórios. E, sem nós, não tem comida no mundo.

Não é possível que a gente siga fazendo comemorações em defesa da agricultura familiar, celebrando safras e não se considere a morte desses guardiões e guardiãs das culturas alimentares do planeta.

A gente tem aí a flotilha Sumud chegando a Gaza, onde há uma população faminta e milhares de toneladas de bombas massacram crianças, a 30 dias de uma COP que está discutindo o colapso climático. Vivemos num mundo onde as sementes não brotam. Aqui mesmo em Belém, inventaram de fazer árvores de vergalhão para não colocar árvores naturais. As crianças estão sendo massacradas, estão sendo transformadas em inimigos.

A gente vê crianças sendo presas pelo exército de Israel com 4 anos. E isso não vai entrar na nossa cozinha. Desde quando o Iacitatá nasceu, temos como princípio ser uma cozinha feita sem genocídio, feita com vida, feita sem veneno, sem transgênico, sem agronegócio e sem conflito agrário.

E, se a gente faz isso, é porque é possível fazer e ficamos muito felizes de saber que o movimento sem terra, o movimento camponês e o movimento dos pequenos agricultores estão conosco. Só conseguimos fazer essa cozinha, com essa quantidade gigantesca de comida, porque sabemos que vocês estão conosco. Vocês também são a nossa flotilha.

Como Belém está lidando com esse turbilhão de atividades?

Tem o Sírio, a COP e, depois, o Natal. Então, é isso aí, temos que fazer o que a gente sabe fazer de melhor nessas terras, que é cozinhar. A Amazônia é mãe. A Amazônia é a maior sociobiodiversidade desse planeta. A maior diversidade de alimento brota daqui desse chão. A maior quantidade de água brota daqui das nossas nascentes com rios aéreos e rios subterrâneos.

Então, a gente está aqui para fazer comida, para fazer comida de verdade. Está uma loucura, e o que a gente vê, ao mesmo tempo, é um colonialismo. Chego a dizer que a COP, por um lado, também entra como uma mineradora aqui, porque ela entra destruindo a dignidade das populações locais e faz isso sem nenhum escrúpulo.

Querem que a gente participe de graça de absolutamente tudo o que eles fazem, enquanto eles recebem vultosos cachês. A gente tem que participar de graça e ainda agradecer, porque "eles estão nos divulgando". Divulgando para quem? A gente é a Amazônia, a palavra mais procurada do Google. Que essas pessoas pensam que são? Que essas pessoas pensam que estão fazendo?

Nós somos Amazônia, somos povos e comunidades tradicionais, somos pessoas desse lugar, que plantam, que comem, que cozinham e que sabem absolutamente o que estamos fazendo. Porque se não fossemos nós, povos indígenas, comunidades tradicionais e camponeses, essa floresta não estava mais de pé e não teríamos mais absolutamente nenhuma nascente viva.

O combate ao colonialismo que chega nessa expropriação de território e de competências na COP é absolutamente primordial. Não é só o fato de você receber uma demanda que diz: "ah, mas vocês não têm pessoas que falem inglês na equipe de vocês?". Ué, mas você está vindo para a Amazônia. Por que não sequer aprendeste a falar um espanhol, já que está vindo para a América Latina? Por que eu sou obrigada a te receber na língua dos ianques e dos piratas?

Então, são muitas etapas que temos que vencer, mas sabemos também que faz parte desse embate sermos potentes e cintilantes nas nossas forças, nos nossos sabores, e em todas as coisas boas e maravilhosas que sabemos fazer.

https://www.brasildefato.com.br/podcast/bem-viver/2025/10/02/indigena-e-parceira-do-mst-taina-marajoara-vai-cozinhar-para-chefes-de-estado-na-cop-30-vao-comer-nossa-comida-revolucionaria/
 

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