De Povos Indígenas no Brasil
Foto: René Fuerst, 1955

Yawalapiti

Autodenominação
Onde estão Quantos são
MT 309 (Siasi/Sesai, 2020)
Família linguística
Aruak
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Os Yawalapiti vivem na porção sul do Parque Indígena do Xingu região que ficou conhecida como Alto Xingu, em que grupos falantes de diferentes línguas compartilham em grande medida um mesmo repertório cosmológico, com modos de vida semelhantes e articulados por trocas comerciais, casamentos e cerimônias inter-aldeias. Enquanto informações gerais sobre o Alto Xingu estão na página dedicada ao Parque, esta seção relata aspectos da versão yawalapiti do mundo alto-xinguano, bem como algumas especificidades desse grupo.

Nome e localização

Aldeia yawalapiti. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1977.
Aldeia yawalapiti. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1977.

O nome Yawalapiti significa "aldeia dos tucuns" e é hoje usado pelo grupo como autodenominação. A "aldeia dos tucuns" seria a localização mais antiga de que se recordam e está situada entre o Posto Diauarum e o travessão Morená (sítio próximo à confluência dos rios Kuluene e Batovi). A atual aldeia yawalapiti está situada mais ao sul, no encontro dos rios Tuatuari e Kuluene, local de terra fértil, distante cerca de cinco quilômetros do Posto Leonardo Villas Bôas.

Aldeia e cotidiano

Foto: Thomas Edson, 1989
Foto: Thomas Edson, 1989

No padrão alto-xinguano, a aldeia yawalapiti é circular, tendo as casas comunais circundando uma praça limpa de mato. No centro da praça (uikúka) ergue-se uma casa freqüentada apenas pelos homens e destinada a ocultar as flautas sagradas apapálu. É nesta casa, ou em bancos diante dela, que os homens se reúnem para conversar ao crepúsculo, e onde eles se pintam para as cerimônias. A casa das flautas é de construção semelhante às residências, tendo, contudo, apenas uma ou duas portas, voltadas para o centro, sempre menores que as portas das casas. As flautas ficam penduradas na viga mestra e durante o dia devem ser tocadas em seu interior;e à noite (quando as mulheres já se recolheram) os homens podem tocá-las no pátio.

A praça é também o lugar onde se enterram os mortos de ambos os sexos, em um túnel que liga dois buracos, aonde assentam dois esteios que seguram a rede do morto (que fica no túnel), para os mortos amulaw (categoria hereditária de prestígio associada à posições e funções de liderança e chefia), ou em cova simples (pawá uti, "um buraco") para os mortos não amulaw. No centro da uikúka são também realizados os banhos rituais de liberação do luto; é lá onde o chefe profere seus discursos e exortações; lá são distribuídos os alimentos durante as cerimônias; lá são recebidos os visitantes de outros grupos, especialmente os mensageiros formais, que convidam para cerimônias intergrupais dos povos do Alto Xingu. O centro ainda é o lugar onde os membros dessas diferentes aldeias se defrontam corporalmente, na modalidade esportiva karí (ou huka huka, na terminologia kamaiurá, como a luta ficou mais conhecida).

As mulheres raramente vão ao uikúka, ao não ser em certas cerimônias, quando se invertem papéis sexuais (como o Amurikumálu, que se chama Yamurikumã, em kamaiurá, comentado na seção Parque Indígena do Xingu), ou quando se trata de moças reclusas que são apresentadas à sociedade pela primeira vez. O centro é o lugar visível por excelência, em contraste com o gabinete de reclusão. Ir ao centro é tornar pública a pessoa social - a saída das moças e moços reclusos é um movimento da periferia (no interior dos gabinetes de reclusão, que ficam no interior das casas) para o centro. (sobre a reclusão pubertária no Alto Xingu, veja o item "Aldeia e sociedade" na seção dedicada ao Parque).

A vida na aldeia começa entre 4h30 e 5h, quando as mulheres vão buscar água; pouco depois, os rapazes vão tomar banho - este banho na manhã fria é considerado benéfico para o lutador -, e um pouco mais tarde vão os mais velhos. Em seguida os homens partem para a roça, lançando gritos agudos que marcam o mergulhar na mata; ou então organizam uma pescaria. Ao meio-dia, ou pouco antes, retornam para a refeição. As mulheres passam a manhã processando a mandioca trazida no dia anterior (ou na madrugada do mesmo dia), e à tarde costumam ferver o mingau nukaya (feito do suco venenoso dessa matéria-prima). À tarde os homens descansam, fazem trabalhos manuais ou vão pescar/caçar. No crepúsculo, as famílias costumam ficar nas portas das casas, conversando e manipulando mutuamente os corpos em atividades como depilação, catar piolho e pentear os cabelos. Os jovens se pintam e se enfeitam. Os homens mais velhos dirigem-se ao centro, convocados pelo dono da aldeia, para "fumar". Às 19h todos começam a se recolher e as famílias nucleares se reúnem em volta de seus respectivos fogos, adormecendo por volta das 22h

Envolvendo a praça central, erguem-se as casas (pá) cobertas de sapé e formando idealmente um círculo (putáka ríku). Uma casa abriga um núcleo geralmente composto de uma família extensa virilocal (de pais e irmãos com suas respectivas esposas) ou de um grupo de homens que trocaram irmãs. Cada casa forma uma unidade de cooperação econômica relativamente independente das outras. Nesse espaço se dorme, se cozinha, se morre, têm-se relações sexuais, nascem os filhos e os adolescentes ficam reclusos.

O espaço interno da casa não comporta divisões, exceto os gabinetes onde ficam os adolescentes em reclusão pubertária, os casais com filhos recém-nascidos e os viúvos no período de luto. As famílias armam redes contiguamente; as separações se fazem principalmente no uso dos esteios que sustentam a extremidade interior dessas redes, sendo um esteio para cada família nuclear. Formando um leque, as redes são penduradas ao longo das paredes, deixando o espaço central para circulação próximo às portas, que se abrem no eixo maior da casa, uma voltada para a praça e outra para o exterior. É perto dessas portas que se sentam aqueles que precisam de luz para realizar alguma atividade, pois o interior da casa é muito escuro.

No centro da casa, ao lado da porta traseira, há um fogo comunal para a fabricação de beiju, mas cada casal possui também um fogo próprio, junto às suas redes, para cozinhar e se aquecer. A água é guardada em grandes panelas que ficam geralmente junto aos esteios centrais da casa, perto da porta da frente.

Língua

A língua yawalapiti pertence à família Aruak, assim como as línguas mehinako e wauja, também faladas no Parque. Atualmente, apenas quatro ou cinco indivíduos falam yawalapiti, predominando na aldeia as línguas kuikuro (da família Karib) e kamaiurá (da família Tupi-Guarani), em razão dos muitos casamentos que ligam os Yawalapiti a esses grupos. Mas eles vêm demonstrando um interesse crescente em recuperar sua língua e para isso têm contado com a assessoria de uma lingüista. Desejam ainda construir uma escola indígena e, em 2002, enviaram representantes para participar do curso de Formação de Professores Indígenas promovido pelo ISA no Parque.

História

O primeiro contato historicamente registrado dos Yawalapiti com não indígenas ocorreu em 1887, quando foram visitados pela expedição de Karl von den Steinen. Nesse período, estavam localizados no alto curso do rio Tuatuari, numa região entre lagoas e pântanos identificada pelos Yawalapiti como sítio de muitas de suas aldeias. O etnólogo alemão ficou impressionado com a pobreza desses índios, que mal dispunham de alimento para oferecer aos visitantes; os Yawalapiti identificam essa época como o início de sua decadência como grupo, que iria culminar na dissolução da aldeia na década de 1930. Von den Steinen menciona dois chefes yawalapiti, Mapukayaka e Moritona (possivelmente Aritana), nomes ainda hoje presentes na genealogia desse povo, que é capaz de traçar sua ascendência até esses contemporâneos de von den Steinen.

Os Yawalapiti contam ter saído da "aldeia dos tucuns", próximo à confluência dos rios Kuluene e Batovi, devido a ataques dos Manitsawá - ou, dizem alguns, dos Trumai - que dizimaram muitos dos seus. Tatîwãlu, chefe dessa aldeia e mais remoto ancestral histórico dos Yawalapiti, lá morreu. Seu irmão Waripirá e seu "primo cruzado" (italuñiri) Yanumaka vieram subindo o Kuluene, liderando os Yawalapiti restantes. Na boca do Tuatuari, houve a divisão do grupo: Yanumaka seguiu pelo Tuatuari acima e Waripirá foi até as cabeceiras do Kuluene. O grupo de Yanumaka estabeleceu-se em Yakunipi, primeira aldeia dos atuais Yawalapiti.

Em razão do crescimento populacional, os Yawalapiti de Yakunipi abriram outras aldeias na região conhecida por Puía ("Lagoa"), um triângulo de terras altas entre lagoas e buritizais alimentados por um braço do Twatwarí. A maior aldeia aí foi a de Ukú-píti ("aldeia das flechas"), antigo sítio Mehinako, abandonado por estes devido a espíritos que infestavam as lagoas e roubavam crianças.

Na metade da década de 1940, após terem ocupado o sítio de Palusáya-píti (anteriormente associado aos Mehinako), os Yawalapiti sofreram uma séria crise, que levou a uma dispersão temporária de sua população entre aldeias kuikuro, mehinako e kamaiurá. Na época da chegada dos Villas Bôas à região, os Yawalapiti reconstruíram sua aldeia, reorganizando-se como grupo. Entre 1948 e 1950, reorganizaram-se no antigo sítio das lagoas (Puía), de onde saíram (por sugestão dos Villas Bôas) no início dos anos 1960, transferindo-se então para Emakapúku, perto do Posto Leonardo. Atualmente, na aldeia, além do núcleo "original" Yawalapiti, vivem índios kamaiurá e kuikuro, kalapalo, wauja e mehinako.

População

Chefe yawalapiti dando início a um jawari com os Waurá. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1977.
Chefe yawalapiti dando início a um jawari com os Waurá. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1977.

Em 1948, imediatamente antes do reagrupamento dos Yawalapiti, Oberg (1953:44) contava 28 indivíduos; em 1954, durante a epidemia de sarampo que devastou a região, eram 25; em 1963 somavam 41 indivíduos; e em 1970 chegaram a 65 (Agostinho 1972:259-260). Desde então, houve um progressivo aumento populacional, não só devido ao crescimento espontâneo do grupo - estimulado pelos serviços de saúde no Parque e a diminuição dos conflitos entre os povos alto-xinguanos e seus vizinhos, por obra da "pacificação" promovida pelos Villas Bôas -, mas à incorporação de membros de outras aldeias, costume antigo na região, mas intensificado com a criação do Parque. Orlando e Cláudio Villas Bôas estimularam os casamentos com outros povos, principalmente com os Kamaiurá, Kuikuro e Mehinako. Embora predominem as línguas Kuikuro e Kamaiurá, por vezes a "casa dos homens" da aldeia reúne falantes de quase todas as línguas do Alto Xingu.

Em 2002, os Yawalapiti, segundo dados da Unifesp, contavam com 208 indivíduos.

Organização social

O "dono da aldeia", putaki wikiti, corresponde hoje a seu chefe, e entre suas atribuições está a de representar o grupo local na interação cerimonial com outras etnias, discursar no centro ao receber mensageiros de outros grupos e aconselhar a aldeia a seguir os modelos de comportamento alto-xinguanos. O putaki wikiti costuma ser escolhido entre os amulaw, que compõem uma classe hereditária de indivíduos de prestígio, freqüentemente líderes de grupos domésticos ("donos de casa"), que detêm prerrogativas especiais nas cerimônias inter-aldeias.

O padrão residencial clássico do Alto Xingu é de que chefes e indivíduos de prestígio, como os membros das categorias correspondentes à dos amulaw yawalapiti, vivam virilocalmente (a mulher mora na casa da família do esposo), enquanto os "comuns" devem passar por um estágio uxorilocal (o esposo mora na casa do sogro) antes de se estabelecerem virilocalmente. Esse modelo é entretanto flexível, pois, no caso de amulaw de prestígio, pode-se acabar mantendo os genros definitivamente em casa (configurando uma uxorilocalidade permanente); há também grupos domésticos formados por homens que trocaram irmãs, incluindo os maridos das filhas; e ainda casas constituídas apenas por famílias nucleares, eventualmente com o pai/mãe viúvo de um dos cônjuges.

Entre os Yawalapiti, bem como entre outros povos do Alto Xingu, as relações de partilha de substância física, estabelecidas na base da procriação, são importantes na formação de grupos e categorias sociais. Assim, pais, filhos e irmãos (mas não esposos) estão ligados por toda a vida por laços de identidade corporal, sendo portanto afetados pelo que ocorre com os corpos uns dos outros. Dessa identidade derivam por exemplos os tabus alimentares a que devem se submeter os pais de crianças pequenas e os parentes próximos de pessoas doentes.

Os filhos são gerados, segundo os Yawalapiti, pela atividade sexual repetida entre um homem e uma mulher. Na verdade, mais de um homem pode contribuir para a formação da criança, sendo também reconhecido como genitor.

A substância que forma o corpo da criança origina-se exclusivamente do esperma masculino, que "corta" ou "fecha" o sangue que as mulheres têm no interior da barriga; o sangue vai "ficando redondo" dentro da mulher e forma o feto. O papel da mãe é essencialmente acolher o sêmen paterno e garantir o desenvolvimento pré-natal do filho. As relações propriamente substanciais entre mãe e filho dão-se por meio da alimentação: o que ela come o alimenta, assim como o faz seu leite, depois do nascimento.

No interior do grupo doméstico também se reconhece a existência de relações de substância independentes dos vínculos de parentesco criados pela procriação, relações que se baseiam na convivência e na comensalidade; o início de menstruação de qualquer mulher da casa, por exemplo, implica a destruição de toda a comida e água lá presente.

Cosmologia e rituais

Competidor waurá prepara-se para lançar o dardo contra um Yawalapiti, em um ritual jawari. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1977.
Competidor waurá prepara-se para lançar o dardo contra um Yawalapiti, em um ritual jawari. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1977.

Para os Yawalapiti, o mundo mítico é um passado que não se liga ao presente por laços cronológicos restritos. Assim, o mito existe como referência temporal e espacial, mas principalmente comportamental. As cerimônias são a ocasião por excelência de replicar esses modelos, mas sua relação privilegiada com o mundo do mito simboliza sobretudo a impossibilidade de sua repetição, a não ser de modo imperfeito. O ritual é portanto um momento em que o cotidiano está mais próximo do modelo ideal mítico, sem no entanto atingi-lo. (Os principais rituais do Alto Xingu estão abordados na página Parque Indígena do Xingu)

Segundo a mitologia yawalapiti (que compartilha o repertório cosmológico alto-xinguano), a fabricação primordial dos humanos foi levada a cabo pelo demiurgo Kwamuty, que, soprando fumaça de tabaco sobre toras de madeiras dispostas em um gabinete de reclusão, deu-lhes vida. Ele criou assim as primeiras mulheres, e entre elas a mãe dos gêmeos Sol e Lua, protótipos e autores da humanidade atual. Essa mulher foi a primeira mortal em cuja honra se celebrou a primeira festa dos mortos, itsatí (ou kwarup, em kamaiurá), a principal cerimônia inter-aldeias do Alto Xingu.

Dança preparatória, na aldeia yawalapiti, para um jawari com os Waurá. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1977.
Dança preparatória, na aldeia yawalapiti, para um jawari com os Waurá. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1977.

Quando nasceram os gêmeos Sol e Lua dessa mulher, vivia-se um tempo de caos, dominado pela noite e a podridão (as aves defecavam sobre as pessoas), não havendo fogo nem roças. Os vagalumes eram a única luz acessível aos homens. Os gêmeos conseguiram então obter o dia do "dono do céu" (añu wikiti), o urubu invisível de duas cabeças, atraindo-o por meio de uma isca podre. Este urubu comanda os pássaros, que deram o dia (a luz) aos homens, sob a forma de adornos feitos com as penas da arara vermelha (o sol mítico usa cocar e braçadeiras feitos de penas dessa ave).

A maioria dos rituais yawalapiti originou-se da visita de um humano a um dos domínios - terra, água e céu - que constituem esferas bem marcadas na classificação yawalapiti, definindo as linhas mestras da classificação animal e recebendo valores cosmológicos distintos. A terra é diversificada, conforme a vegetação e a referência a eventos míticos. A distinção principal nesse domínio é entre a "selva" (ukú), onde moram animais e espíritos, e a aldeia (putaka), morada dos humanos. Nos rios (uiña) e lagoas (iuiá), além dos peixes, moram a maioria dos espíritos importantes para os Yawalapiti. No céu (añu naku; añu taku) residem as almas dos mortos; lá é o império dos pássaros, chefiados pelo urubu bicéfalo, "dono do céu". Na "barriga da terra" (wipiti itsitsu), embaixo do chão, mora uma mulher-espírito, gorda, com um seio só; ela amamenta os mortos femininos e copula com os masculinos; é a "dona da terra".

Yawalapiti luta huka-huka com um Kalapalo no então Posto Indígena Vasconcelos. Foto: René Fuerst, 1955.
Yawalapiti luta huka-huka com um Kalapalo no então Posto Indígena Vasconcelos. Foto: René Fuerst, 1955.

A categoria "gente" (ipuñiñiri), segundo a cosmologia yawalapiti, distingue "índios" (warayo) e "brancos" (caraíba), tanto pela aparência física (que faz com que japoneses e chineses sejam classificados como warayo-kumã: "outro índio", "índio misterioso") como pela cultura material. Dentre os índios, os grupos do Alto Xingu são tidos como uma unidade (putáka), em contraste com os outros povos. Os warayo em geral distinguem-se dos putáka por terem um regime alimentar diferente - todos comem apapalutapa-mina, "animais terrestres" -, por serem "bravos" (Kañuká) e imprevisíveis, bem como pelo corte de cabelo e adornos diferentes. Warayo é um termo usado pejorativamente pelos yawalapiti quando alguém demonstra ausência de vergonha (parikú).

Além de compartilharem uma série de costumes, concepções e rituais inter-societários, outro marco distintivo dos índios do Alto Xingu é um ideal de comportamento respeitoso e recatado, cujas categorias-chave, na versão yawalapiti, são parikú (vergonha) e kamika (respeito). Parikú refere-se a um estado psicológico do indivíduo, comumente acionado quando há uma transição ou confusão de papéis - como entre reclusos ou entre possíveis esposos- ou inferioridade hierárquica - como entre genro e sogro, ou no caso das mulheres em meio aos homens. Já kamika é atributo de certas relações e papéis sociais, remetendo ao comportamento pacífico e previsível, bem como à generosidade e respeito aos afins e àqueles hierarquicamente superiores. É respeito, mas é também "medo", no sentido da evitação de coisas perigosas. Ao contrário do kamika típico dos alto-xinguanos, associado ao adjetivo mañukawã ("manso", "calmo"), há o comportamento kánuká, violento e imprevisível, típico dos warayonaw (índios de fora do Alto Xingu).

Xamanismo

Os Yawalapiti postulam a existência de uma multiplicidade de seres espirituais com influência considerável nos assuntos humanos: eles causam a maioria das doenças, encontram-se com os humanos na floresta, ajudam os xamãs e são os "donos" de certas espécies animais. Em geral, há duas classes de espíritos: os seres-kumã, que são duplos transcendentes de espécies animais e classes de objetos cotidianos; e os apapalutápa, que possuem nomes próprios, de correspondência mais vaga com as entidades do mundo cotidiano (incluindo o trovão, o raio e espíritos com uma forma singular). Em ambas as classes, é comum conceberem-se os espíritos como possuindo uma essência antropomorfa por baixo de uma aparência monstruosa, concretamente pensada como uma roupa ou envoltório (iná). Os espíritos são invisíveis, munukinári; só aparecendo para os doentes e os xamãs em transe. Ver um espírito acidentalmente (sempre quando se está só e fora da aldeia) provoca por si só doença ou morte.

Os apapalutápa estão usualmente em toda parte, menos dentro da aldeia, onde surgem apenas em situações extraordinárias de doença, xamanismo e ritual. Duas figuras da sociedade humana mantêm uma relação especial com os apapalutápa: os xamãs e os feiticeiros. Todo espírito é por definição um iatamá, xamã. Alguns são xamãs específicos de certas ordens animais, mas "xamã" e "espírito" são em certa medida sinônimos.

As relações dos apapalutápa com a sociedade yawalapiti são predominantemente individuais, sob a forma básica da doença. À parte os males causados por feiticeiros, os quais podem, de resto, prevalecer-se da ajuda de espíritos, todas as doenças decorrem de um contato com o mundo sobrenatural. O doente é alguém que foi "morto" (kuká inukakína, o que se diz igualmente do xamã em transe) por um apapalutápa. Tal estado se deve à penetração de dardos invisíveis no corpo, que o xamã extrai e exibe na sessão curativa. Ele também pode ser causado por um roubo da alma (ipaïori) pelo espírito, que a leva para a aldeia dos apapalutápa. Este roubo é experimentado pelo doente como uma viagem onírica especialmente intensa (todo sonho ou delírio febril é uma viagem da alma); ela termina quando o xamã repõe a alma com o auxílio de uma boneca (yakulátsha: ver yakulá, "sombra", "alma dos mortos") concebida como uma imagem do doente.

Uma vez curado, o indivíduo passa a dever algo para o espírito que viu. Ele deve então patrocinar uma cerimônia em que representa o espírito por meio de cantos, danças e adornos/pinturas corporais. Essa cerimônia é o momento em que o grupo de substância do doente (que tende a ser uma unidade de produção cotidiana) distribui comida a toda a aldeia. O espírito é encarnado-representado pela comunidade, e ambos são alimentados pelo grupo que, idealmente, jejuou durante a doença: a comida distribuída é dita "(nome do espírito) inúla". O doente torna-se patrono (wököti) da cerimônia, e dela não participa como ator.

O xamã, assim, exerce o controle social das relações entre a aldeia e o mundo sobrenatural: ele regula as relações entre homens e espíritos que habitam as águas e a floresta; através de seu diagnóstico, os espíritos causadores de doenças são socializados pelo ritual. O feiticeiro, por sua vez, representa o paradigma do ser marginal: é o homem da porta traseira, que invade as casas, que coloca feitiço nas roças, que se transforma em animal no mato.

A vocação xamânica é uma doença em que um espírito se manifesta e dá tabaco ao noviço, ensinando-lhe cantos e remédios. A pimenta e o tabaco são ditos Kahiúti, dolorosas ou ardidas, e constituem parte da dieta própria dos xamãs. O tabaco é a substância predileta dos espíritos, que apreciam seu perfume örö (o qual contrasta com o sangue e os fluidos genitais, detestados pelos espíritos) e é um supremo agente transformador. O demiurgo Kwamuty fabricou os primeiros humanos assoprando fumaça sobre toras de pau; Sol ressuscitou Lua fumigando-o. Os mitos abundam em episódios onde o tabaco vivifica, repara e refaz. As flautas apapálu, originalmente espíritos aquáticos, foram capturadas mediante o recurso à pimenta e, sobretudo, ao tabaco.

Atividades produtivas

Yawalapiti pescando com seu filho no então Posto Indígena Vasconcelos, no Parque Indígena do Xingu. Foto: René Fuerst, 1955.
Yawalapiti pescando com seu filho no então Posto Indígena Vasconcelos, no Parque Indígena do Xingu. Foto: René Fuerst, 1955.

Os Yawalapiti, como os demais alto-xinguanos, vivem basicamente da agricultura e da pesca. A caça reduz-se a algumas aves consideradas comestíveis (jacu, mutum, macuco, pomba), aos macacos-prego, eventualmente comidos, e à aquisição de penas para enfeites; certas aves são também convertidas em animais de estimação. A agricultura concentra-se no cultivo da mandioca brava (maniot utilissima), mas outras variedades de mandioca são plantadas em menor quantidade. Milho, banana, algumas espécies de feijão, pimenta, tabaco e urucum são algumas das outras espécies cultivadas.

A pesca é atividade masculina por excelência; os rios da região são abundantes em peixe e, na época da seca, quando os rios baixam, os Yawalapiti utilizam redes (de procedência não indígena), anzóis, flechas e timbó (cipó cuja seiva asfixia os peixes) para a obtenção deste alimento. Os peixes podem ser assados direto no fogo, moqueados (colocados sobre jiraus a fogo lento) ou cozidos.

A região e seus recursos são aproveitados pelos Yawalapiti para a maioria de suas necessidades: fibras de buriti para redes e cestos, sapé para a cobertura das casas, taquara para flechas, raízes e folhas como remédios, entre outros. O sal tradicionalmente usado na alimentação era fornecido principalmente pelos Mehinako, e provinha do cozimento das cinzas de uma planta aquática. As grandes panelas de preparação da mandioca provêm dos Mehinako e Wauja, que detêm a tecnologia de sua fabricação.

A mandioca é plantada pelos homens, que derrubam, queimam e limpam as roças. Estas são propriedade individual, masculina, assumida tão logo o jovem entra em reclusão (14-17 anos). Esses direitos de propriedade não incidem sobre a terra como tal, mas apenas a plantação de mandioca. As mulheres arrancam as raízes, carregam-nas, ralam-nas e espremem seu suco venenoso. A mandioca é basicamente consumida sob a forma de beiju (ulári) - torrada de polvilho, chata, assada em tachos circulares -, de mingau de beiju dissolvido em água (uluni), e de um mingau resultante da fervura do suco venenoso (nukaya). O polvilho que resta no fundo das panelas de espremer, bem como parte da massa, é armazenado em silos no centro das casas.

Massa de mandioca para fazer beiju. Foto: René Fuerst, 1955.
Massa de mandioca para fazer beiju. Foto: René Fuerst, 1955.

A cozinha é feita indiferentemente por homens e mulheres, no que diz respeito aos produtos da pesca; a manipulação da mandioca depois de plantada, contudo, é inteiramente feminina. As mulheres são também encarregadas do fornecimento de água na aldeia. São elas que fiam o algodão - também plantado -, tecem as redes e as esteiras de espremer mandioca, e preparam a pasta de urucum, o óleo de pequi e a tinta de jenipapo, usados na ornamentação corporal. Os homens fazem os cestos, os instrumentos cerimoniais (flautas e chocalhos), e realizam todos os trabalhos em madeira (bancos, arcos, pilões, pás de virar o beiju etc.). São ainda os homens que constroem as casas.

Fontes de informação

  • CAVALCANTE, Ieda Maria da Silva.  A presença dos meios de comunicação tecnológicos na aldeia Yawalapiti.  Brasília : UnB, 1997.  107 p.  (Dissertação de Mestrado)

 

  • FERREIRA, Cláudio Santos.  Intestinal parasites in iaualapiti indians from Xingu Park, Mato Grosso, Brazil.  Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro : Fiocruz, v. 86, n. 4, p. 441-2, 1991.

 

  • GODOY, Marília Gomes Ghizzi.  Algumas considerações sobre as etnias e o problema de identidade indígena no Alto do Xingu : a aldeia Yawalapiti.  São Paulo : USP, 1980.  (Dissertação de Mestrado)

 

  • MUJICA, Mitzila Isabel Ortega.  Aspectos fonológicos e gramaticais da língua yawalapiti (aruak).  Campinas : Unicamp, 1992.  92 p.  (Dissertação de Mestrado)

 

  • SÁ, Cristina.  Observações sobre a habitação em três grupos indígenas brasileiros.  In: NOVAES, Sylvia Caiuby (Org.).  Habitações indígenas.  São Paulo : Nobel ; Edusp, 1983.  p. 103-46.

 

  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo.  Alguns aspectos do pensamento Yawalapití (Alto Xingu) : classificações e transformações.  In: OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de (Org.).  Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil.  Rio de Janeiro : Marco Zero ; UFRJ, 1987.  p. 43-83.

 

  • --------.  A construção do corpo na sociedade xinguana.  In: OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de (Org.).  Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil.  Rio de Janeiro : Marco Zero ; UFRJ, 1987.  p. 31-42.

 

  • --------.  A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia.  São Paulo : Cosac & Naify, 2002.  552 p.

 

  • --------.  Indivíduo e sociedade no Alto Xingu : Os Yawalapiti.  Rio de Janeiro : UFRJ- Museu Nacional, 1977.  235 p.  (Dissertação de Mestrado)

VÍDEOS